O coronavírus, que atualmente é o assunto singular em quase a unanimidade das mídias por causa da Covid-19 (coronavirus disease 2019) é agente etiológico de importantes doenças infecto-contagiosas tanto em animais de produção quanto em pets. Por isso mesmo, a maioria dos médicos veterinários já está familiarizada com o tema.
Somente para ilustrar bovinos de corte e leiteiros (sinais clínicos entéricos e respiratórios na dependência da faixa etária), suínos (entérico), frangos de corte e galinhas poedeiras (respiratório), cães (entérico) e gatos (entérico e peritonite) são passíveis de infecções por coronavírus e desenvolvem quadros clínicos que podem desde reduzir taxas utilizadas para avaliar a produção e produtividade em animais de produção, quanto levar à morte, principalmente em animais jovens. Por isso, coronavírus não é nenhuma novidade para os médicos veterinários, sejam aqueles que trabalham com animais de produção ou aqueles que cuidam de nossos pets.
Epidemias por coronavírus comprometendo continentes inteiros como a Ásia ou países como os Estados Unidos da América também não são novidades para a classe médico veterinária. Nos anos 2013 e 2014 vivenciamos o surgimento de um novo coronavírus suíno agente da Diarreia Epidêmica Suína que ocasionou grande impacto sanitário e econômico à suinocultura chinesa e também foi responsável pela morte de praticamente 10% do rebanho suíno Norte Americano. Mas…….. porque isso tudo.
Diferentemente de outros vírus que apesar de seu poder de virulência para os seus hospedeiros são estáveis, ou seja, tem baixo potencial de mutação, os coronavírus são partículas virais extremamente complexas tanto em relação à sua estrutura quanto em relação ao seu genoma. E é aí que mora o perigo.
Os coronavírus são vírus com genoma RNA. A maioria dos RNA vírus é mais instável que os DNA vírus. Em outras palavras os vírus com genoma DNA mutam menos que os vírus com genoma RNA. Durante a replicação do coronavírus ocorre uma alta taxa de mutação de seu complexo genoma. Podem ser geradas dezenas de partículas virais distintas chamadas de quasispecie, que pode ser definida como um grande número de partículas virais, que compõe a estrutura populacional, com variações genômicas. A maioria dos indivíduos (partículas virais) dessa nova população viral (progênie viral) é inviável, ou seja, não tem potencial para invadir outra célula e prosseguir com o processo infeccioso.
Entretanto, em algumas situações, a infecção pode se estabelecer desenvolvendo um processo infeccioso completo, com produção de progênie viral. Essa variante viral pode ser responsável pelo surgimento de uma nova doença, até então desconhecida seja na mesma espécie animal como foram os casos de PED (Porcine Epidemic Diarrhea – Diarreia Epidêmica Suína) ou então, ainda mais preocupante, com a quebra de barreiras interespécies. Nesse caso, apenas com coronavírus humano, em um passado recente, o mundo já teve oportunidades de experienciar duas novas epidemias denominadas SARS e MERS que são coronavírus de morcegos que após sucessivas mutações adaptaram-se, infectaram e foram transmitidas por seres humanos. MERS teve ainda a sutileza de fazer um pitstop em camelos antes de comprometer o ser humano. Enfim, a diversidade antigênica e molecular dos coronavírus é muito grande. Somente com potencial de infectar a espécie humana, incluindo o coronavírus causador da Covid-19, denominado Sars-Cov-2, são descritos 17 coronavírus distintos.
Em condições exponencialmente superior a nós seres humanos, os vírus e, particularmente os vírus com genoma RNA, estão em constante evolução. Cabe a nós virologistas, epidemiologistas, médicos veterinários, médicos e todos os trabalhadores em “Saúde Única” jamais baixar a guarda. Exemplos de surtos, epidemias e pandemias não faltam no campo da virologia animal e humana pretérita, atual e, também com certeza, na futura.
Até agora comentamos rapidamente sobre as expertises do coronavírus e isso nos preocupa muito.
Mas…. a mãe natureza é pródiga.
Da mesma forma que em termos moleculares o coronavírus é um tremendo vilão que nos deixa muito preocupados e vigilantes com relação ao nosso dia-a-dia (virologia, epidemiologia, imunologia), em contraposição, essa partícula viral felizmente é muito lábil às condições ambientais, principalmente por causa de sua complexa estrutura. A presença de uma estrutura denominada envelope viral, que protege o capsídeo viral, o faz mais sensível tanto às condições ambientais quanto aos produtos químicos rotineiramente utilizados em processos de desinfecção e de antissepsia.
Para exemplificar aos colegas do mundo pet é muito mais fácil reduzir a dose infectante presente no ambiente do vírus da cinomose canina, que também é envelopado, do que do parvovírus canino, que é um vírus não envelopado. Em resumo, a estrutura viral denominada envoltório ou envelope viral torna o vírus muito mais lábil, facilitando a redução da dose infectante e, em algumas situações, até mesmo eliminando o seu potencial infeccioso. Limpeza e desinfecção rigorosas reduzem consideravelmente o número de partículas virais infecciosas em superfícies, equipamentos e utensílios.
Por falar em superfícies contaminadas vamos lembrar de nossos pets. Na Coréia do Sul foi relatada a identificação do novo coronavírus (Sar-Cov-2) causador da Covid-19 em um cão. Entretanto, até agora (22.03.2020) não houve comprovação científica que o cão possa ser um transmissor ativo da Covid-19. Ou seja, não há qualquer comprovação que o vírus tenha capacidade de replicar em cães, ou em qualquer outa espécie animal, e que estes possam atuar como reservatório e fonte de transmissão direta para o ser humano.
Porém, o cão, assim como o gato, ou qualquer outro pet pode ser um carreador mecânico do vírus. O tutor infectado pode contaminar o seu pet que atuará como qualquer superfície contaminada pelo vírus. Na hipótese de um indivíduo susceptível entrar em contato com esse pet pode se infectar assim como ocorre quando ele coloca a mão em um corrimão ou em um carrinho de supermercado contaminado. Ou seja, o pet, até o momento, tem apenas a função de um carreador do Sars-Cov-2. Com isso, os cuidados com os pets em relação à Covid-19 devem ser aqueles mesmos que estamos aprendendo a ter em nosso dia-a-dia com o objetivo de evitar a infecção.
M.V. Prof. Dr. Amauri A. Alfieri
Laboratório de Virologia Animal, Departamento de Medicina Veterinária Preventiva
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
Membro do Comitê Assessor do CNPQ
Pró Reitor de Pesquisa e Pós Graduação da Universidade Estadual de Londrina
M.V. Profa. Dra. Alice F. Alfieri
Laboratório de Virologia Animal, Departamento de Medicina Veterinária Preventiva
Universidade Estadual de Londrina (UEL)