Definição e artigo científico ilustrativo
Introdução
As doenças gastrointestinais crônicas em cães e gatos podem assumir diferentes formas e mecanismos. Entre elas sobressaem duas entidades que frequentemente geram confusão: a síndrome do intestino irritável (SII, ou IBS – irritable bowel syndrome) e a doença inflamatória intestinal (DII, ou IBD – inflammatory bowel disease). Embora os sinais clínicos possam se sobrepor como diarreia, vômito, dor abdominal ou alterações do apetite os mecanismos, a gravidade, o diagnóstico e o tratamento diferem significativamente. É importante para clínicos conhecerem essas diferenças, a fim de orientar melhor o diagnóstico, a terapia e o prognóstico.
A SII ou “IBS-like” em animais de companhia refere-se a uma condição funcional em que há sinais gastrointestinais crônicos (geralmente diarreia, possivelmente constipação, gases) sem evidência de lesão inflamatória significativa ou alteração estrutural detectável na mucosa intestinal.
Etiopatogenia
Em SII, o mecanismo principal parece estar ligado a distúrbios da motilidade intestinal os intestinos contraem-se de forma irregular, muito rápida ou muito lenta, comprometendo a passagem de conteúdo.
Fatores desencadeantes incluem: intolerâncias alimentares, estresse ou ansiedade, alterações funcionais da mucosa sem evidência de inflamação evidente.
Ao contrário da DII, não se observa (ou então em grau mínimo) infiltração inflamatória significativa ou dano estrutural crônico que caracterize a mucosa intestinal. Por isso, é considerada um “diagnóstico de exclusão”.
Em gatos, o conceito de SII é ainda mais controverso: não há consenso se a SII “verdadeira” existe felinos ou se muitos casos que se classificam assim são, de fato, formas leves de enteropatia ou IBD.
Sinais clínicos e diagnóstico
Pode apresentar diarreia (geralmente grande-intestino ou mistura), por vezes constipação, gases, cólicas ou desconforto abdominal.
O diagnóstico exige a exclusão de causas orgânicas: exames de sangue, imagem abdominal, pesquisa de parasitas, cultura de fezes, às vezes biopsia intestinal para descartar inflamação.
Histologicamente, espera-se ausência de lesão inflamatória ou mínima; portanto, se houver infiltração linfoplasmocitária significativa, a hipótese de IBD torna-se mais provável.
Resposta ao tratamento com dieta de fibra, manejo de estresse, probióticos pode ser rápida.
Importância clínica e tratamento
Embora possam ocorrer episódios, muitas vezes a SII tem prognóstico mais favorável do que a DII.
O tratamento inclui: dieta altamente digestível, aumento de fibras solúveis e insolúveis, controle do estresse/ ansiedade, uso de probióticos e, em alguns casos, antidiarreicos ou moduladores de motilidade.
Em cães com SII, é comum a melhora rápida com dieta e manejo, diferente da DII que frequentemente exige terapia intensiva.
Doença inflamatória intestinal (DII/IBD) em cães e gatos
Definição e artigo científico ilustrativo
A DII ou IBD em cães e gatos refere-se a um grupo de doenças caracterizadas por inflamação crônica da mucosa intestinal (e possivelmente submucosa), com infiltração de células inflamatórias (linfócitos, plasmócitos, eosinófilos) e sem causa evidente de infecção ou neoplasia.
Etiopatogenia
A DII resulta de uma combinação complexa de fatores: predisposição genética, disbiose intestinal (alteração da microbiota), barreira mucosa comprometida, resposta imunológica alterada local (incluindo desequilíbrio entre citocinas pró e antiinflamatórias) e antígenos alimentares ou luminais.
Estudo de microbiota em cães e gatos com IBD mostra redução de Firmicutes e Bacteroidetes, aumento de Proteobactérias e menor diversidade microbiana, semelhante ao que ocorre em humanos com IBD.
A barreira intestinal comprometida permite que antígenos luminais ativem o sistema imune da mucosa, desencadeando inflamação contínua.
A imunopatogênese pode envolver polarização das células T (Th1, Th17) embora em cães/gatos não esteja completamente esclarecida.
Sinais clínicos e diagnóstico
Clinicamente, revela-se por vômitos crônicos, diarreia (intermitente ou contínua, de intestino pequeno ou grande), emagrecimento, má absorção, às vezes presença de sangue ou muco nas fezes.
O diagnóstico exige, além da exclusão de outras causas (parasitas, infecções, neoplasia, insuficiência pancreática, etc.), confirmação histológica (biopsia intestinal ou endoscópica) de inflamação intestinal.
Pode haver alterações laboratoriais como hipoalbuminemia, alterações da proteína C-reativa, anemia de doença crônica.
Dada a cronicidade e a possível gravidade, o prognóstico pode ser reservado em alguns casos (dependendo da gravidade, do envolvimento de linfangiase, da resposta ao tratamento).
Importância clínica e tratamento
A DII geralmente requer tratamento contínuo: dieta de eliminação ou proteína hidrolisada, modulação da microbiota (probióticos, prebióticos), antibióticos em casos selecionados (ex: doxiciclina, enrofloxacina) e imunossupressores (prednisolona, ciclosporina) em casos mais graves.
Em cães, por exemplo, existe boa evidência (nível I) para uso de dieta gastrointestinal terapêutica, glucocorticoides e antibióticos (como enrofloxacina) na enteropatia crônica.
O prognóstico depende de diversos fatores: estado nutricional, albumina sérica, resposta à dieta, grau de envolvimento histológico, entre outros.
Considerações finais
Para clínicos que atendem cães e gatos com sinais gastrointestinais crônicos, é essencial que:
- Considere ambas as entidades (SII e DII) no diferencial, e entenda as diferenças tanto para escolha terapêutica como prognóstica.
- Realize uma investigação sistemática: exames laboratoriais, imagem, parasitologia, cultura de fezes, e, se indicado, endoscopia/biopsia.
- Em caso de SII, o foco pode estar em alterar a motilidade, manejar estresse/intolerâncias e usar dieta de suporte; em DII, exige-se abordagem imunológica e inflamatória.
- Informe o proprietário sobre a necessidade, em DII, de terapia de longo prazo, eventuais recaídas, risco de complicações; e na SII sobre a boa chance de resposta ao manejo dietético e de estilo de vida.
- Mantenha acompanhamento contínuo — monitorando sinais clínicos, peso, condição corporal, proteínas séricas, resposta à terapia.
Para a condição da Doença Inflamatória Intestinal (DII/IBD) em cães e gatos: Microbiota alterations in acute and chronic gastrointestinal inflammation of cats and dogs, de Honneffer et al., 2014.
Para a condição análoga à Síndrome do Intestino Irritável (SII/IBS) em cães: Is irritable bowel syndrome also present in dogs?, de Cerquetella et al., 2018.
Transplante de Microbiota Fecal (TMF)
O TMF consiste em transferir microbiota intestinal saudável (via fezes processadas) de um doador clinicamente sadio para um receptor com disbiose intestinal — o objetivo é restaurar o equilíbrio microbiano, melhorar a função da barreira intestinal e modular a resposta imunológica local.
Evidências científicas em DII/IBD
Article: “Fecal microbiota transplantation for treatment of chronic enteropathy in dogs: a randomized clinical trial”
Fonte: Journal of Veterinary Internal Medicine, 2021
Resultado: cães com enteropatia inflamatória crônica que receberam TMF mostraram melhora clínica significativa e aumento na diversidade bacteriana intestinal comparado ao grupo controle.
Article: “Fecal microbiota transplantation as an adjunct treatment for canine inflammatory bowel disease”
Fonte: Veterinary Medicine and Science, 2022
Resultado: melhora de escore clínico e da consistência fecal em cães com DII refratária à terapia convencional.
Sugere que o TMF pode reduzir a inflamação e restaurar o microbioma intestinal.
- Recolonização com microbiota saudável – aumento de bactérias produtoras de butirato (anti-inflamatórias).
- Redução de patobactérias (como Escherichia coli disbióticas).
- Modulação da resposta imune intestinal (redução de IL-6, TNF-α).
Evidências em SII/IBS
Em cães e gatos, quase não há estudos clínicos controlados.
Em humanos, o TMF mostrou melhora em parte dos pacientes com IBS, especialmente aqueles com disbiose identificada.
Em animais, casos análogos são anedóticos — e a maioria dos casos de “IBS-like” melhora apenas com dieta, manejo de estresse e probióticos, sem necessidade de TMF.
O TMF é indicado principalmente para casos de Doença Inflamatória Intestinal (DII/IBD), especialmente:
- Refratários à terapia convencional (dieta + imunossupressores).
- Com disbiose intestinal confirmada por análise de microbiota ou metagenômica.
- Quando há recidivas frequentes ou má resposta ao tratamento habitual.
Na SII/IBS, o TMF não é indicado rotineiramente, podendo ser considerado apenas de forma experimental em protocolos de pesquisa.
Tradicionalmente, o TMF era realizado por via retal ou por sonda nasogástrica, mas atualmente, a via oral tem se mostrado uma alternativa prática, menos invasiva e bem tolerada pelos animais.
O transplante fecal oral tem sido empregado principalmente em cães e gatos com:
- Doença inflamatória intestinal (DII) refratária ao tratamento convencional;
- Disbiose intestinal induzida por antibióticos ou dieta inadequada;
- Diarreias crônicas idiopáticas;
- Enteropatias responsivas à microbiota;
- Casos pós-antibiótico, para restauração do equilíbrio intestinal.
Dra Glauce Carreira
Especializada em Ortomolecular e Alimentação Funcional com formação em Modulação Intestinal.
CEO do Instituto Wellness Pet em SP/capital.






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